Marília Coutinho aborda o parkour, e debate limites entre beleza e saúde e questiona a divisão entre físico e mente.
iG: Então não são apenas os esportes "puros" que ajudam?
Marília: De
jeito nenhum. Parkour [atividade que mescla corrida, saltos e escalada
em espaços urbanos] é um bom exemplo. Nasceu como um movimento
espontâneo. E é uma atividade muito complexa, técnica, difícil, que
envolve riscos de lesão, muita força, agilidade e coordenação.
Ví no pulo do gato .
Texto do midianews
Ela é bióloga, PhD em sociologia da ciência e campeã brasileira de
halterofilismo e, na adolescência, foi campeã paulista de esgrima. Com
currículos de destaque tanto na área intelectual como na esportiva,
Marília Coutinho, 47 anos, acaba de lançar o livro "Estética e saúde - a
linha tênue entre beleza e saúde" (editora Phorte), com artigos sobre
as contradições da separação entre mente e corpo, considerados partes
separadas da pessoa. "Mutilar qualquer parte do indivíduo traz
sofrimento", disse ao iG.Marília sabe do que está falando: portadora de
transtorno bipolar, sobreviveu a uma tentativa de suicídio há quatro
anos, quando pegou o carro, parou na estrada Rio-Santos e cortou a
própria jugular. Salva por um homem que passava e a levou para o
hospital, só reencontrou seu equilíbrio ao descobrir o treino de força. .
É sobre a importância de reintegrar corpo e mente e sobre beleza e
força que ela falou ao iG.
iG: Por que separar o corpo da mente traz sofrimento?
Marília:
Mutilar qualquer parte do indivíduo traz sofrimento. A pessoa só pode
ser feliz se estiver minimamente integrada. O corpo e a mente não são
pecinhas de um quebra-cabeça. Isso é uma invenção construída ao longo
dos séculos. Qualquer movimento é uma expressão da existência daquele
ser. É como a dança: expressão do corpo, da emoção e do espírito.
iG: Como nos alienamos do nosso corpo?
Marília: Imagine uma
alta executiva. Ela acorda às 7h, vai ao escritório, senta-se numa
cadeira confortável, que mascara o quanto ficar sentada tanto tempo faz
mal ao corpo. Vai ao médico e ele prescreve um calmante à noite e um
anti-inflamatório para as costas. Ela toma um monte de cafeína, talvez
fume. No fim do dia, chega em casa, toma um banho, um uísque e vai
dormir. Se tiver filhos, tem ainda o conflito da culpa. Quando ela for
para a cama com um cara, se o sexo for uma merda, será que surpreende?
Ela está sendo violentada todos os dias, o tempo inteiro. Tudo na vida
dela é ruim para o corpo e feito para a cabeça. Aí entra a indústria
farmacêutica, para garantir que ela não pife. Um dia vai dar um clique
de que ganha R$ 60 mil por mês, mas a vida dela é horrível. Mas sempre
dá para reintegrar, porque o corpo é muito plástico.
iG: Se reintegrar é só voltar a usar o corpo?
Marília: É usar
conscientemente. Sempre é tempo para mudar o corpo, fazer a adaptação
neural, muscular. A gente deve ter otimismo: todo mundo se desintegra ao
longo da vida e pode se reintegrar.
iG: Vale qualquer atividade física?
Marília: Tudo depende do
significado dado à atividade. Dança, jogos, formas de expressão
espontâneas são recursos integrativos que a humanidade sempre teve. Yoga
e tai chi já ganharam lugar na sociedade. Você tem que ter o direito de
ir à noite dançar, é tão importante ou mais do que o seu trabalho.
iG: Então não são apenas os esportes "puros" que ajudam?
Marília:
De jeito nenhum. Parkour [atividade que mescla corrida, saltos e
escalada em espaços urbanos] é um bom exemplo. Nasceu como um movimento
espontâneo. E é uma atividade muito complexa, técnica, difícil, que
envolve riscos de lesão, muita força, agilidade e coordenação.
iG: As mulheres são afetadas de forma diferente pela alienação do corpo e da mente?
Marília:
A mulher sofre mais. Quando menina, é colocada para fazer desenhos e
escrever e entra numa espiral de coisas mentais enquanto os meninos
podem sair para correr, pular.
iG: Se não adianta olhar só para o corpo, seja para os exames, seja
para o número da calça, como dar uma medida para a felicidade e para o
bem estar?
Marília: São medidas externas. Para os exames, os
parâmetros foram estabelecidos com estudos dentro de uma população; é
uma média. O que vale é o acompanhamento individual no longo prazo. Os
médicos às vezes vão avaliar essa média e corrigir parâmetros que já são
saudáveis. A pessoa pode estar feliz com o jeito que está vivendo, mas
precisa ser alertada de que a gordura abdominal pode virar síndrome
metabólica. E ela não vai ficar feliz, porque é algo muito chato para se
conviver porque altera muito o estilo de vida. O médico tem de dar o
alerta, mas a escolha é da pessoa.
iG: Ou seja, o que é considerado a "escolha ideal" não é sinônimo de felicidade?
Marília:
O atleta Jón Páll Sigmarsson, o homem mais forte do mundo, tinha um
defeito cardíaco, e morreu fazendo um levantamento de peso aos 32 anos.
Quem é arrogante o suficiente para julgá-lo e dizer que ele não deveria
ter feito isso? Ele tinha uma bomba-relógio no peito e optou
conscientemente pela felicidade. A informação externa serve para tomar a
decisão interna, que é a mais relevante.
iG: Há gente que não vê atividade física como prazer. Isso não vai contra a ideia de que o corpo naturalmente busca o movimento?
Marília:
Um corpo e uma mente violentados por muitos anos podem fazer com que a
pessoa não consiga encontrar prazer na expressão livre da sua essência.
Se a pessoa foi agredida demais em relação ao corpo, às vezes é
irrecuperável. Ela vai interpretar aquilo como algo ruim, negativo,
doloroso, desagradável, deprimente. Sedentarismo é uma violência contra o
corpo socialmente aceita.
iG: Apesar dos índices de sedentarismo serem crescentes, um corpo
modelado nunca esteve tanto em evidência. Como explicar o descaso com
ele numa sociedade que idolatra o corpo?
Marília: Ter que expor o corpo apenas de uma forma determinada é a
mesma coisa que ter que cobri-lo. O que a gente vive é um momento de
formolatria e não de corpolatria. Ou seja, idolatria da forma corporal. O
corpo que serve agora daqui a pouco não serve mais, porque tem de ser
continuamente construído. A mulher que foi plastificada para servir,
daqui a três meses tem que fazer outra cirurgia para servir de novo.
iG:
E o corpo de rainha de bateria, o da moderninha magrinha, da funkeira
cheia de curvas? Os nichos não garantem ter modelos de beleza mais
variados?
Marília: Graças a Deus os nichos existem, e as pessoas
podem se encaixar neles e se sentirem apreciadas e amadas. Antes você
tinha a Marilyn Monroe como modelo. Mas ela é real. O que a gente tem
hoje são moldes mesmo. Por isso sou pessimista. Você tem tecnologia para
criar um molde e enfiar um corpo real lá dentro, apertar e sair algo
inteiramente artificial.
iG: Por conta do esporte, seu corpo sai desses padrões. Como você é vista pelos homens?
Marília:
É ambíguo. Essa história de que homem não tem tesão por mulher forte é
mentira. Eu sofro agressão, mas sou objeto de admiração também, que
mostra que a espécie não está perdida. Para a maior parte dos caras, que
não tem problema de masculinidade, não vai incomodar.
iG: E as mulheres?
Marília: O único lugar onde tem alguma
hostilidade é o campeonato de fisiculturismo. As mulheres usam peitão
siliconado, saltão e maquiagem. Eu não uso.
iG: O exercício de força não mexe com sua feminilidade?
Marília: O
percurso que fiz é bacana porque permite se reencontrar com você mesma
como mulher. A força é extremamente feminina. Os arquéticos de Gaia, com
os vulcões e tsunamis, não têm nada de suave e fraco. O que uma mulher
encontra quando busca a própria força é ela mesma como mulher.
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